Planejamento familiar, ou como as famílias tipográficas funcionam

Essays by Peter Biľak
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Portuguese
russian dolls

O tamanho e a complexidade de famílias tipográficas desenvolvidas recentemente atingiu níveis sem precedentes. Basta ver, por exemplo, a família United, um lançamento recente (2007) da House Industries. A família inclui 105 fontes em três estilos (sem serifa, serifada e itálica), disponíveis em sete pesos e cinco larguras. Leva alguns minutos apenas para percorrer todas as variações listadas no menu de fontes. Um outro exemplo desta tendência é a família tipográfica Chronicle (2002-2007), recém-lançada pela Hoefler & Frere-Jones, com uma gama de variações que inclui larguras (da regular à comprimida), pesos (da extra leve à extra pesada), e tamanhos óticos (desde texto até título). Levando-se em conta apenas o tamanho, Chronicle inclui 106 fontes e supera a United por apenas uma variação de estilo.

united font family

United, família tipográfica de 105 fontes criada por Tal Leming, publicada pela House Industries em 2007.

É claro que essas ‘superfamílias’ beneficiam-se de invenções dos séculos passados; uma contínua série de inovações tipográficas que desbravaram novos caminhos para as gerações futuras de designers.

A história como uma série contínua de descobertas

Desde o princípio do uso de tipos móveis, certos tipos incluíam versões para tamanhos específicos. Os tipos de Claude Garamond da década de 1530 (também conhecidos como caractères de l’Université) incluíam 15 versões com tamanhos variando de 6 a 36 pontos. Cada tamanho foi desenhado, cortado e fundido separadamente; os caracteres foram projetados especificamente para a aparência ótica do texto impresso, com larguras de letras otimizadas, assim como os contrastes entre as partes finas e grossas das letras. Quando redimensionados fotograficamente para o mesmo tamanho aparente, é fácil perceber diferenças significativas entre cada desenho. Os tipógrafos de antigamente podiam escolher vários tamanhos, assim como nós hoje podemos escolher vários pesos de um determinado tipo.

garamont 6 36pt

Os caracterès de l’Université de Garamond da década de 1530 incluem 15 versões óticas variando de 6 a 36 pontos. Em cima estão os tipos de 7pt e 36pt em tamanho real (100%). Embaixo, a amostra de 7pt foi ampliada em 425% até o mesmo tamanho da amostra de 36pt. Repare na diferença de contraste entre os traços grossos e finos, e as diferenças gerais nos detalhes entre as duas versões.

Na era do iluminismo, houve uma necessidade clara de se organizar e racionalizar esses diferentes tamanhos de tipos para impressão. Em 1737, Pierre Simon Fournier publicou uma tabela de tamanhos graduados para tipos, introduzindo o primeiro sistema padronizado para produção e uso de tipos. Fournier relacionou o tamanho do tipo ao ‘pouce’ (uma versão francesa da polegada), e subdividiu o ‘pouce’ em 72 ‘pontos’. Esse novo sistema tornou-se o padrão adotado pelos países de língua inglesa, e em 1742 Fournier publicou o seu Modèles de caractères de l’imprimerie, no qual aprofundou a sistematização do tamanho de corpo dos tipos para impressão, e sugeriu nomes para os tamanhos usados mais comumente. A primeira menção a tipos sendo organizados em ‘famílias’ também tem origem no trabalho de Fournier.

Pierre Simon Fournier’s printed scale of his  point system, from Modèles de caractères de l’imprimerie, 1742.

Escala impressa por Pierre Simon Fournier do seu sistema de pontos, de Modèles de caractères de l’imprimerie, 1742. Fournier foi o primeiro a introduzir um padrão para produção e uso de tipos, sugerindo uma unidade tipográfica chamada ‘ponto’.

Descobertas tecnológicas subsequentes talvez tenham permitido que tipógrafos se esquecessem da grande invenção dos desenhos ajustados oticamente de acordo com o tamanho. Tipos produzidos por reprodução pantográfica (redimensionando-se um desenho matriz para diversos tamanhos diferentes), assim como as tecnologias posteriores de fotocomposição e tipografia digital, todas funcionavam a partir de um único desenho-mestre independente do tamanho da aplicação final. Desenhos de tipo com tamanhos óticos fizeram um breve retorno no início dos anos 1990, mais notavelmente com a ITC Bodoni, que continha desenhos específicos similares aos tamanhos usados pelo criador dos tipos originais, Giambattista Bodoni. Esses incluíam a Bodoni Six, desenhada para pequenos subtextos, a Bodoni Twelve, para texto corrido, e a Bodoni Seventy Two, para uso em títulos.

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Tamanho ótico, entretanto, é apenas um dos parâmetros que determinam a aparência de um tipo. Parece que os desenhos de tipo precisam estar vinculados por diversos outros parâmetros compartilhados para que sejam vistos como parte de um grupo coerente ou família. Um desses outros parâmetros é o peso do tipo. Por cerca de 400 anos, os impressores e editores saíram-se bem com um único peso de tipo, usando apenas o tamanho do tipo como principal recurso de diferenciação semântica. Mesmo documentos complexos, como o dicionário de Samuel Johnson (A Dictionary of the English Language, 1755), usa apenas um único peso em diferentes tamanhos para mostrar as diferenças hierárquicas entre palavras-chave, definições e descrições.

A ideia de se variar o peso de um único tipo surgiu provavelmente no meio do século XIX. Tipos pesados já existiam antes daquela época, mas eles geralmente eram vistos sozinhos, e não em relação ao peso regular (de texto). As pressões comerciais da revolução industrial inspiraram a criação de diferentes pesos de tipos. A ideia era simples: para diferenciar um texto de outro, ou para ressaltar uma parte específica do texto. Havia muitas oportunidades se para usar diferentes pesos de um tipo em uma economia de mercado ocidental no século XIX. Por exemplo, o tipo Clarendon (1842), da fundição Besley and Company, é amplamente reconhecido como um dos primeiros desenhos de tipo negrito (bold), e logo após o período de 3 anos de copyright terminar ele foi extensivamente imitado e pirateado.

Clarendon e seus clones, entretanto, apesar de terem sido claramente criados para uso ao lado de uma Romana (o peso regular, ou tipo para texto), ainda não tinham estabelecido uma relação sistemática entre os vários pesos (ou larguras) de um desenho de tipos baseado no conceito de família.

besley clarendon

Muitos ao invés de apenas um

A partir do início do século XX tornou-se prática comum incluir diversos pesos para complementar o lançamento de um novo tipo. O melhor exemplo disso talvez seja o trabalho de Morris Fuller Benton, que complementou os muitos tipos que ele desenhou para a American Type Founders (ATF) com versões condensadas e mais pesadas. Tecnologia e estética trabalhavam lado a lado para Benton, que usou a recém-inventada máquina de gravura pantográfica (1886) de seu pai, que era capaz não apenas de aumentar/diminuir um único desenho de tipo para uma variedade de tamanhos, mas que também podia condensar, extender e inclinar o desenho. Essas operações geométricas fundamentais são as mesmas transformações básicas que a maioria dos sistemas tipográficos digitais utilizam hoje.

Na segunda metade do século XX, o trabalho de Adrian Frutiger, de forma única, deslocou a atenção do design de um único tipo para o design de um sistema completo de tipos, vendo o design de uma família tipográfica como um espaço contínuo definido por dois eixos: largura e peso. A fundição Deberny & Peignot lançou a obra-prima de Frutiger, Univers, em 1957, com 21 variações, algo sem precedentes. A abordagem sistemática de Frutiger e o seu esquema de nomeação inovador eliminaram a confusão na especificação tipográfica, e talvez tenha sido mais interessante do que o design do tipo em si. Ele criou um sistema novo de estilos referenciados por dois dígitos, em que o número 5 inicial refere-se ao peso básico (romana ou texto), e o número subsequente refere-se à largura (5 sendo o padrão ou normal). Números mais altos significavam um acréscimo no peso ou na largura, portanto enquanto a Univers Regular era Univers 55, a Univers Bold era chamada de Univers 75, e a Univers Regular Condensada de Univers 57. O sistema Univers previa 9 pesos e 9 larguras (incorporando também uma variação oblíqua, ou itálica sem serifa), embora algumas combinações tenham se mostrado impráticas, portanto não há uma Univers 79, ou Extra-Negrito Condensada. A Linotype expandiu a família Univers para 63 versões em 1997 – para isso o sistema numérico foi extendido para três dígitos, de modo a refletir o grande número de variações da família. Frutiger imaginou originalmente que esse sistema poderia ser usado por outras famílias tipográficas, porém a sua convenção sistemática nunca ganhou uma aceitação mais ampla entre as fundições de tipos ou designers contemporâneos a ele.

Univers

A família tipográfica Univers, projetada por Adrian Frutiger em 1957, consistindo de 21 desenhos de tipo. Ao invés de focar em um tipo único, Frutiger desenvolveu um sistema de tipos interrelacionado.

A incorporação de dois estilos diferentes de tipos em uma mesma família foi provavelmente explorada em primeiro por Jan van Krimpen, em 1932, em seu projeto Romulus. A intenção de Van Krimpen era criar uma grande família de tipos para uso na impressão de livros; incluiria romana, itálica, um tipo manuscrito (script), tipos negrito e condensados, um tipo sem-serifa em pelo menos quatro pesos, um tipo grego, e possivelmente mais. Era um projeto deliberadamente mais ambicioso do que a família de Lucien Bernhard, que havia sido lançada dois anos antes (Bernhard Gothic, Kingsley ATF, 1930).

Romulus, designed by Jan van Krimpen in 1932

Romulus, projetada por Jan van Krimpen em 1932, foi uma das primeiras famílias tipográficas a incluir versões com e sem serifa em uma série de pesos. O pacote completo incluía ainda uma romana inclinada, uma itálica chancelaresca (Cancelleresca Bastarda), e um Grego infame.

As formas com e sem serifa da Romulus compartilham os mesmos princípios de construção, porém os desenhos de letra resultantes dos dois estilos são bastante distintos. Van Krimpen cita o historiador de tipos John Dreyfus em seu livro On Designing and Devising Type, 1957: “A proposta da família Romulus era suprir as necessidades básicas para impressão de livros, e através de uma série de desenhos relacionados possibilitar um estilo consistente e flexível.” Interessantemente, Van Krimpen tentou separar o estilo de seu tipo romano e aplicá-lo ao alfabeto grego também. E embora o seu Romulus Grego seja uma falácia, por compreender de forma equivocada a translação de formas do alfabeto Latino para o Grego, o método sugerido por Van Krimpen é usado com sucesso na ‘localização’ de boa parte dos tipos não-latinos hoje em dia. Quando o design de tipos é compreendido como um sistema, ele pode ser visto como o produto de muitos parâmetros compartilhados entre formas de letra de origens tão distintas quanto os alfabetos Grego e Latino.

Design paramétrico

Uma visão radicalmente nova do entendimento de famílias tipográficas foi proposta paradoxalmente não por um designer e sim por um matemático. Em 1977, Donald Knuth concebeu uma linguagem de programação que ele chamou de Metafont, que definia a forma das letras através de equações geométricas poderosas. Ao invés de descrever os contornos dos glifos (como os formatos de fonte PostScript and TrueType fariam mais tarde), o Metafont descreve uma ‘pena’ imaginária que cria os traços para a construção das letras. Por causa dessa abordagem única, é possível alterar um parâmetro individual no desenho de um tipo – como o tamanho ótico, o ângulo de inclinação, ou o tamanho das serifas – para obter uma alteração consistente através de toda a fonte. Um único arquivo de fonte pode ser portanto uma família tipográfica complexa com muitas versões diferentes. O Metafont pode controlar mais de 70 parâmetros diferentes, que teoricamente podem definir a aparência de qualquer desenho de letra projetado com ele. Mesmo apesar das vantagens óbvias do sistema, e da colaboração de Knuth com o celebrado designer de tipos Hermann Zapf, Metafont nunca foi usado de forma ampla. Tecnologias posteriores como os formatos de fonte GX, da Apple, ou MultipleMaster, da Adobe, também tiveram destinos similares.

A escola de Haia

Gerrit Noordzij, que ensinou caligrafia e design de tipos na Academia Real de Belas Artes de Haia por 30 anos, delineou e desenvolveu sua teoria da escrita em diversos livros. O seu modelo apresenta o estilo serifado como um tipo de alto contraste, em distinção oposta aos tipos sem serifa de baixo contraste; e os dispõe em um modelo coerente de possibilidades tipográficas. Assim, ao invés de discussões ideológicas sobre “com serifa” vs. “sem serifa”, Noordzij foca na influência das ferramentas durante a criação de marcas sobre uma superfície. Noordzij descreve três caminhos para produção de tipos de letra: translação, expansão e rotação, cada um referindo-se a diferentes processos e diferentes resultados estilísticos entre vários grupos de tipos de letra.

noordzij cube

Publicado em 1985 no livro “O Traço”, o tipógrafo e professor holandês Gerrit Noordzij propôs uma teoria da escrita independente da ferramenta utilizada. Seu diagrama ilustra o argumento principal da sua teoria da escrita, apresentando os conceitos de translação, expansão e rotação.

As teorias pragmáticas de Noordzij foram altamente influentes entre um grupo de designers que estudou na Academia. Um deles foi Lucas de Groot, que projetou a Thesis (1994-1996), uma família de tipos com três variações de construção (sem serifa, com serifa, e misturado), abrangendo 8 pesos e totalizando 144 variações. Essa “superfamília” tipográfica foi posteriormente expandida com a adição de versões monoespaçadas e condensadas. De Groot desenvolveu e aplicou no projeto da Thesis a sua própria teoria da interpolação, que faz relações não-lineares entre os pesos de um desenho de letra. Lançada em 1994, Thesis era a maior família tipográfica criada até então.

Parte do programa contemporâneo da Academia Real de Belas Artes de Haia, o Type&Media é um curso de pós-graduação focado na educação em design de tipos. É apenas natural que um lugar como esses esteja na vanguarda da experimentação tipográfica, redefinindo o que entendemos pelos termos “tipo” e “família tipográfica”.

Gustavo Ferreira, um recém-graduado pelo Type&Media, produziu Elementar (2003-2006), um sistema completo de fontes pixel geradas através de uma série de scripts em Python. Elementar foi inspirado mais por Metafont e Univers do que por fontes bitmap existentes. Trata-se de um sistema paramétrico que responde a critérios selecionados pelo usuário; um design básico para uma fonte bitmap simplificada serve de modelo, sobre o qual outros parâmetros são aplicados. Por causa das limitações na exibição de glifos em tamanhos pequenos na tela, os glifos são expressos em termos de frações ou múltiplos exatos do desenho modelo.

Gustavo Ferreira’s system of bitmap fonts Elementar

Sistemas de tipos deste tamanho tornam-se difíceis de serem usados, na medida em que a lista de variações de estilo no menu de fontes vai se tornando cada vez maior. No caso da Elementar são 500 fontes bitmap individuais, então é preciso oferecer uma solução alternativa para que o usuário possa selecionar a variação correta. Assim, ao invés de apresentar uma lista completa de possibilidades, a Elementar vêm com sua própria interface online, através da qual o usuário pode selecionar os parâmetros e obter a variação ou variações de estilo correta(s).

Kalliculator foi o trabalho de graduação no Type&Media de Frederik Berlaen (2006). Ao invés de desenhar um alfabeto, Berlaen criou uma ferramenta que cria desenhos de letra a partir de em um conjunto predefinido de parâmetros. De forma similar às ferramentas de Knuth nos anos 1970, Kalliculator simula penas caligráficas e suas relações com um traço desenhado. O projeto de Berlaen usa as teorias de Noordzij como base, e a pena eletrônica do Kalliculator pode variar entre os estilos de ponta chata e flexível. Os usuários fornecem uma linha de contorno aberta, e o programa calcula o contraste ao redor do esqueleto, aplicando o contorno de uma pena imaginária em torno do meio matemático do traço. A ideia é de que a trajetória da mão é separada do estilo da pena, portanto os usuários podem experimentar aplicando vários parâmetros sobre os seus próprios traços. Um único desenho de um ‘a’ pode resultar em centenas de versões, cada uma sendo diretamente ligada a todas as outras por meio do seu desenho matriz. Dessa forma, o aplicativo de Berlaen desafia visões tradicionais de famílias de tipos, já que um tipo gerado do mesmo esqueleto está relacionado às outras variações da família de uma maneira uniforme.

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Kalliculator não é um desenho de letra, e sim uma ferramenta para criar desenhos de letra a partir de um conjunto predefinido de parâmetros. Os usuários desenham os traços, e o programa simula uma pena de ponta chata ou de ponta flexível (ou uma mistura entre as duas), controla o peso e o contraste, aplica os mesmos parâmetros em todos os glifos disponíveis, e finalmente gera o arquivo de fonte.

Conclusão

Afinal, o que exatamente define uma família tipográfica? Uma analogia com uma família física real nem sempre serve de ajuda, pois diferentemente do mundo biológico, diferentes gerações de famílias tipográficas geralmente não são consideradas parte da mesma família.

De forma semelhante, no nível dos glifos individuais, cada estilo da família tipográfica precisa poder ser reconhecido como diferente para permanecer funcional. E contudo, cada estilo precisa aderir aos princípios comuns que governam a consistência da família tipográfica. É claro que os membros individuais de uma família precisam compartilhar um ou mais atributos, e a história tipográfica nos oferece muitos exemplos disso; tamanho ótico, peso, largura, diferenças de estilo (sem serifa, serifado e semi-serifado), diferenças de construção (formal e informal), são os parâmetros mais comuns que relacionam os membros de famílias tipográficas. Podemos encontrar também relações menos comuns, como variação na forma das serifas, alteração nas proporções entre altura-x, ascendentes e descendentes, ou a possibilidade de utilizar versões diferentes de acordo com o contexto.

O trabalho de designers como Berlaen e Ferreira é edificado sobre séculos de inovação tipográfica, e ajuda a explorar território novo para o design de tipos. Eles participam na cumulativa, contínua e inspiradora história do desenvolvimento do desenho de tipos, exigindo que nós continuemos a criar esse trabalho em progresso.

Publicado originalmente na revista sueca CAP & Design em Novembro de 2007, traduzido por Gustavo Ferreira